"No Egito as bibliotecas eram chamadas Tesouro dos remédios da alma. De fato é nelas que se cura a ignorância, a mais perigosa das enfermidades e a origem de todas as outras.”

(Jacques Bossuet).

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Coitados dos diferentes! (Kaspar Hauser)

kaspar-hauser

“O que são de fato os homens sem aquilo que a sua cultura faz deles?” (Clifford:Gertz em A interpretação das culturas. Ed. Guanabara)

Já postei aqui sobre os diferentes , pessoas que muitas vezes se sentem infelizes por se perceberem excluídas dos “politicamente corretos” ou “politicamente aceitos”.

Ser diferente não deveria ser um estigma, mas infelizmente na nossa hipócrita e condicionada sociedade assim o é. Há tempos assisti um filme que mostra brilhantemente como a sociedade se comporta com os diferentes. O filme é “O enigma de Kaspar Hauser” do aclamado diretor Werner Herzog. É baseado em uma história verdadeira ocorrida em Nuremberg entre 1828 e 1833.

“Hauser passou os primeiros anos de sua vida aprisionado numa cela, não tendo contacto verbal com nenhuma outra pessoa, fato esse que o impediu de se expressar em um idioma. Porém, logo lhe foram ensinadas as primeiras palavras, e com o seu posterior contato com a sociedade, ele pode paulatinamente aprender a falar, da mesma maneira que uma criança o faz. Afinal, ele havia sido destituído somente de uma língua, que é um produto social da faculdade de linguagem, não da própria faculdade em si. A exclusão social de que foi vítima não o privou apenas da fala, mas de uma série de conceitos e raciocínios, o que fazia, por exemplo, que Hauser não conseguisse diferenciar sonhos de realidade durante o período em que passou aprisionado.

Hauser, supostamente com quinze anos de idade, foi deixado em uma praça pública de Nuremberg, em 26 de maio de 1828, com apenas uma carta endereçada a um capitão da cidade, explicando parte de sua história, um pequeno livro de orações, entre outros itens que indicavam que ele provavelmente pertencia a uma família da nobreza.

Entre as idiossincrasias originadas pelos seus anos de solidão, Hauser odiava comer carne e beber álcool, já que aparentemente havia sido alimentado basicamente por pão e água. Aprendeu a falar, a ler e a se comportar, e a sua fama correu a Europa, tendo ficado conhecido à época, como o "filho da Europa". Obteve um desenvolvimento do lado direito do cérebro notoriamente maior que o do esquerdo, o que teoricamente lhe proporcionou avanços consideráveis no campo da música.

Hauser foi assassinado com uma facada no peito, em Dezembro de 1833, nos jardins do palácio de Ansbach. As circunstâncias e motivações ou autoria do crime jamais foram esclarecidas, apesar da recompensa de 10.000 Gulden (c. 180.000,00 Euros) oferecida pelo rei Luís I da Baviera.” (Wikipédia)

Sua história já foi motivo de muitas análises por psicólogos, sociólogos etc.. O que mais chama a atenção é a forma como foi visto e tratado pela sociedade da época.

“O século XIX, época em que Kaspar Hauser viveu, foi um período marcado pela perspectiva positivista, evolucionista e desenvolvimentista. A visão de que havia um modelo de civilização e de desenvolvimento a ser alcançado, tanto pelos homens, como pelas sociedades, estava em seu auge. Todos aqueles que não correspondiam ao protótipo do homem "civilizado" eram classificados como primitivos, atrasados e deveriam ser "ajudados" a alcançar graus mais avançados na escala de desenvolvimento e evolução. É dentro dessa visão de mundo que Kaspar Hauser vai ser socializado.”

(...) “A forma diferente como ele percebia a realidade parecia suficiente para que fosse visto como "diferente," estranho, o "outro" pela sociedade da época.”

(...) “Os objetos não eram percebidos por K. Hauser da forma como a prática social definia previamente, ou seja, K. Hauser estava despido dos "filtros" e estereótipos culturais que condicionam a percepção e o conhecimento. Tais "filtros" ou estereótipos, por sua vez, são garantidos e reforçados pela linguagem.”

“Tanto Masson (1997), quanto Herzog (1974) e Blikstein (1983), apontam para o fato de que após algum tempo de convivência com a comunidade de Nuremberg, Kaspar Hauser passa a representar um incômodo, pois vê a realidade, que aos olhos dos outros estava tão bem ordenada, com outros olhos: os olhos "subversivos" que não aceitam os referenciais que a sociedade insiste em lhe impor, negando, de certa forma, a ordem social vigente. Ele olha as pessoas, os objetos e as situações com o espanto e a perplexidade de um olhar "puro," sem "filtros" ou estereótipos perceptuais. A sua aproximação cognitiva da realidade é direta, ou seja, percebe o mundo de uma maneira ainda não programada pela estereotipia cultural.”

Nesse sentido, Blikstein (1983) afirma que o que concebemos como realidade é apenas uma ilusão, pois a práxis opera em nosso sistema perceptual, ensinando-nos a "ver" o mundo com os "óculos sociais" e gerando conteúdos visuais, tácteis, olfativos e gustativos que aceitamos como naturais. Como Kaspar Hauser não passou por esta práxis, ou apenas começou a vivenciá-la quando adolescente, sua forma de comportamento abala os fundamentos da ilusão referencial, pois não "enxerga" a realidade da forma como os outros esperam.” (Maria Clara Lopes Saboya)

Kaspar, por exemplo, não entendia porque somente as mulheres realizavam as tarefas domésticas e ainda serviam aos homens como se fossem suas serviçais.

Foi-lhe imposta uma evangelização à qual reagiu muito mal, pois não conseguia entender a existência de um Deus. Claro que o Deus que lhe apresentaram é aquela figura controversa da Bíblia.

No curto período em que conviveu entre os homens Kaspar sofreu muito devido ao preconceito com que era tratado e muitas vezes hostilizado.

Em vista do exposto é de se refletir quais as convenções sociais que vivemos e o que se chama de normal, dentro da estrutura de uma sociedade que não sabe como reagir ao entrar em contato com um homem inocente, puro, sem cultura e sem regras a seguir.

Aconselho a assistirem a esse filme, é tocante e coloca-nos em cheque quanto às nossas “convicções” e percepções da realidade em que vivemos.

Imagem: fredburlenocinema.com

Este blog foi criado para você, leitor. E só saberei se você está satisfeito se comentar os posts, ou então, pergunte, questione e sugira temas ou modificações.

16 comentários:

Blogueiros do Brasil disse...

Orgulhosamente programei uma 'chamada' para este ótimo artigo no site agregador de conteúdo dos Blogueiros do Brasil. Será publicado em 15/10/12 , no decorrer do dia.
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http://omelhordos.blogueirosdobrasil.com/
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Abraços cordiais.

Anônimo disse...

"Vocês riem de mim por eu ser diferente, e eu rio de vocês por serem todos iguais". (Bob Marley)

Bob Marley foi um grande pensador. Muitos desconhecem esse seu lado filosófo.

Eduardo Medeiros disse...

Boa dica de filme.

Essa ideia de que a realidade que nós vemos é uma "ilusão" por ser sempre construção a partir de vários fatores tanto internos quanto externos é difícil de ser aceita. Por outro lado, não entendo que ninguém nasça "puro". Já trazemos em nosso DNA psíquico inclinações que não foram aprendidas que são resultantes do puro instinto, como a agressividade. Vide os bebezinhos ainda tão "puros" que manifestam várias vezes sua agressividade. Mas é certo que a cultura nos forma em certos padrões e ir contra eles é se tornar "diferente", e o diferente sempre é motivo de preconceito e rejeição. Talvez por que vemos no diferente características que repudiamos em nós mesmos.

beijos.

Luciana Flora disse...

Infelizmente a maioria das pessoas realmente não sabe lidar com a diferença; E nem mesmo precisa ser fisica.. Pode ser apenas no jeito de ser..

MUitas vezes eu senti que ser mais introvertida no Rio de Janeiro , seroa quase uma berração.. srsrs

Uma vez eu disse a uma colega que não me divertia em festas.. e ela me olhou como uma ET e disse que isso era impossivel.. srsrs

Atena disse...

Tiozão:
Obrigada pela força.
Abraços

Atena disse...

Anônimo:
Estava certo o Bob Marley, os iguais são aqueles hipnotizados ou condicionados pelo sistema.
Seja bem vindo.

Atena disse...

Edu:
Concordo com você quanto a não nascermos uma tábula rasa, pois além da herança genética ainda há a influências das encarnações anteriores.
Kaspar Hauser foi considerado puro no sentido de ser como uma criança, ainda não contaminada pela sociedade.
Se você quiser ter uma noção do quanto a nossa realidade é uma construção, tome uma mescalinazinha básica que entenderá. rsrs
abração

Atena disse...

Luciana:
Eu sei que você conhece o peso de ser diferente e já lhe disse que muitas vezes isto é um privilégio.
Nem todos se divertem em festas, muitos fingem que o fazem para se sentirem melhores.
beijos

Beth Muniz disse...

Oi Atena,
Que história hem?
"Kaspar, por exemplo, não entendia porque somente as mulheres realizavam as tarefas domésticas e ainda serviam aos homens como se fossem suas serviçais".
Bem, se vivesse hoje ainda sofreria com a cultura do politicamente correto, para uma “maioria”, que nem sempre age corretamente, quando não respeita as diferenças.
Já sabia algumas coisas sobre a história. Mas contada e analisada por você, ficou muito mais clara.
E o filme, onde encontro? Gostaria muito de assistir.
Gostei. Muito!
Beijo querida.
Se cuide!

Ana Bailune disse...

Ser diferente deveria ser encarado como uma bênção, mas na sociedade em que vivemos, todos lutam para serem cada vez mais iguais. Gente triste.

Atena disse...

Beth:
O nosso mundo atual piraria o Kaspar em minutos. rsrs
Provavelmente você o encontra em boas locadoras. Vale a pena assistir.
É uma história triste, mas o Herzog sempre faz filmes excelentes. O rapaz que interpreta o Kaspar não é ator e dá um show, o que demonstra a capacidade desse brilhante diretor.
beijos e boa semana pra você

Eduardo Medeiros disse...

sem dúvida, Atena, a nossa realidade é mesmo construção - deixei de afirmar isso categoricamente. A influência genética é certa. Já vidas anteriores fica por tua conta e risco...rsss

Atena disse...

Ana:
Você disse algo que me chama muito a atenção de uns tempos pra cá: essa uniformidade nas maneiras e vestimentas dos jovens. Aí quando querem ser diferentes apelam para a bizarrice (ex: Lady Gaga).
Você disse bem: gente triste.
abraços

Atena disse...

Edu:
Tá certo. As vidas anteriores ficam por minha conta, contudo o risco não existe mais, pois já fiz as pazes com elas. rsrs

ricardo alves / são paulo,brasil disse...

excelente filme e reflexão a respeito!

Atena disse...

Ricardo:
Seja bem vindo e grata pela apreciação do post.