"No Egito as bibliotecas eram chamadas Tesouro dos remédios da alma. De fato é nelas que se cura a ignorância, a mais perigosa das enfermidades e a origem de todas as outras.”

(Jacques Bossuet).

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Quão grossa é nossa casca civilizada?

senhor das moscas

Há muitos anos li o livro que mais me impactou negativamente. Deixou-me muito chocada e com tendência a descrer da natureza humana: O Senhor das Moscas de William Golding (prêmio Nobel de 1983). Foi feito filme a respeito, parece que está no Youtube.

Para os que não leram, resumo brevemente: o livro trata de um grupo de meninos, com idades variadas, que sobreviveram a um acidente aéreo e se encontram numa ilha deserta do Pacífico sem a presença de nenhum adulto.

A ilha contém água e bastante caça. Inicialmente há só festejos por não terem que frequentar aulas ou obedecerem a adultos, mas logo percebem que terão de se organizar para sobreviverem. Ralph é eleito líder do grupo e orienta que deverão construir abrigos e plantar para futuramente não carecerem de comida (não sabem quanto tempo transcorrerá até serem resgatados), porém logo depois é contestado por outro elemento do grupo, chamado Jack, um adolescente desbravador, inconseqüente e cruel que propõe que se dediquem apenas à caça e às brincadeiras.

Após várias disputas, o grande grupo se divide  seguindo os dois líderes de temperamentos tão opostos: Ralph e Jack.

O restante do livro mostra os embates que passam a ocorrer entre os dois grupos e onde veremos distintos personagens encenando características humanas como bravura, lealdade, raciocínio lógico, conformismo, controle e finalmente barbárie.

É um livro pesado e sombrio que mostra sem dó a natureza humana. Contudo foi escrito logo após a segunda grande guerra e isso explica o pessimismo do autor em relação à raça humana.

Eu lembrei desse livro quando, há poucos dias, estava lendo sobre o Experimento Robbers Cave que trata da teoria RCT (Teoria do Conflito Realista).

No verão de 1954, num acampamento de escoteiros em Robbers Cave State Park, Oklahoma, o psicólogo social Muzafer Sherif reuniu 22 meninos de 12 anos, separando-os em dois grupos que não tinham ciência da existência do outro nos primeiros dias.

Ambos os grupos formaram times camaradas e unidos enquanto permaneceram separados, todavia quando posteriormente foram postos em contato para competir (um grupo contra o outro) em atividades como baseball, cabo de guerra, etc. começou a haver agressividade ao ponto de meninos terem de ser fisicamente separados  pelos adultos.

Sheerif considerou ter provado a teoria que desenvolveu mais tarde (RCT) de que o que leva grupos a ter preconceitos e estereotipias negativas é a competição por recursos desejados.

No nosso país, o exemplo mais flagrante dessa teoria são as torcidas de futebol com suas atitudes muitas vezes selvagens e totalmente irracionais.

Infelizmente o ser humano se compara com os demais pelas suas diferenças e não pelas semelhanças e se acrescentarmos o fator competição as hostilidades aumentam. Isto fica bem demonstrado no livro O Senhor das Moscas onde os dois grupos que se defrontam são bem diferentes em algumas atitudes e/ou comportamentos.

O mais impactante é que tanto no livro quanto no experimento de Sherif os meninos são de classe média alta, provenientes de famílias cristãs e de bons costumes. Como puderam chegar a cometer atos de selvageria?

Será que a casca de civilidade dos seres humanos é tão fina?

È bom refletir sobre o assunto. Lembrar que em todos nós, lá no fundo,  mora um ser das cavernas, instintivo e primitivo que nunca saberemos quando vai acordar até nos vermos em uma situação limite que vai nublar nossa razão.

Daí a importância de desenvolvermos nossa consciência para poder prevenir esse tipo de tropeço.

Imagem: www.elirodrigues.com

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terça-feira, 10 de setembro de 2013

Somos ricos! Somos cultos!

medicos

Este foi o grito de ordem de um grupo de médicos que protestou frente ao Ministério da Saúde no mês de julho.

Agora eu pergunto: riqueza e cultura dão habilitação para tratar um doente?

Não contentes com o vexame que deram perante a nação, no dia da chegada dos médicos cubanos em Fortaleza fizeram um “corredor polonês” e vaiaram os colegas recém chegados chamando-os de escravos.

Esse episódio me fez sentir muita vergonha de ser brasileira!

A saúde pública está terrível? Está.

Faltam equipamentos e infraestrutura nos postos de atendimento? Sim.

Isso é responsabilidade do governo? É.

Contudo isso não é culpa dos médicos que aqui estão chegando e que vão beneficiar uma população carente. Por que então vilipendiá-los?

Os representantes da classe médica, em suas declarações à imprensa, utilizaram-se de dois argumentos contra a vinda dos médicos estrangeiros: 1) a falta do exame “revalida” e 2) a ausência de médicos brasileiros nos “cafundós” ser por falta de condições para trabalharem.

1) O exame Revalida:

As palavras a seguir são de um médico brasileiro que trabalha em Portugal.

(...) “o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, CREMESP, avaliou os formandos de forma obrigatória em 2012. Menos da metade dos médicos foi aprovada nesse exame.

(...) O viés da primeira edição do exame, em 2010, foi vergonhoso. Chamado de Revalida, o exame acontece em duas etapas, uma teórica e outra prática. O nível de dificuldade foi tão grande que só dois, entre mais de 600 inscritos, formados em diferentes escolas médicas do mundo, foram chamados para a segunda fase. Os organizadores reconheceram que o nível de exigência foi além do necessário e prometeram reformular o exame.

Seria bem interessante que nossos médicos se submetessem a este exame ao final do curso de medicina. Não seria justo que os médicos brasileiros também só fossem autorizados a exercer medicina se passassem no Revalida? Se a preocupação é com a qualidade do profissional que vai ser lançado no mercado de trabalho, o que importa se ele foi formado no Brasil, em Cuba ou China? O CFM se diz tão preocupado com a qualidade do médico cubano, mas não faz nada contra o grande negócio que se tornaram as faculdades caça-níqueis de Medicina. No Brasil existe um exército de médicos de qualidade pavorosa.” . (http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/07/os-medos-dos-medicos-brasileiros.html)

Ah, eu sei bem disso. Estou praticamente sem poder caminhar porque após dois anos consultando com diversos médicos (não do SUS, mas de convênio), nenhum deles foi capaz de me dar um diagnóstico para a dor em minhas pernas. Foi preciso eu consultar com um quiropraxista para aí sim obter um diagnóstico. Claro que em dois anos o problema se agravou bastante e agora estou penando para revertê-lo.

2) Falta de condições para os médicos trabalharem.

Sim há falta de condições, mas isso é somente uma desculpa dada pelos médicos “ricos” e “cultos”. Vi num programa de TV que em uma cidade do nordeste não carente de infraestrutura, o prefeito ainda estava procurando um candidato que aceitasse os “míseros” R$ 37.000,00 que estava oferecendo de salário.

Quem me dera ganhar a metade dessa quantia por mês...

Eu entendo que todo profissional tem direito a querer boa recompensa financeira por todo seu investimento anterior, no entanto, atualmente, a classe médica demonstra estar mais preocupada em faturar do que curar seus pacientes (com raras e honrosas exceções).

Essa falta de médicos no interior não é de agora, já existia na década de 1960 quando um primo se formou em Medicina e seus colegas não acreditaram quando ele disse que iria clinicar em uma pequeníssima cidade do interior.

O objetivo da contratação desses médicos estrangeiros é prestar o atendimento básico e para tanto não é necessário equipamentos de última geração, aliás, os médicos brasileiros não sabem mais fazer isto. À chegada de um paciente, mal o olham e após ouvir a queixa já pegam do formulário de pedidos de exames. Não são capazes de auscultar o paciente nem de tocá-lo para um exame físico (como faziam os médicos de antigamente).

O presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, João Batista Gomes Soares disse que iria "orientar meus médicos a não socorrerem erros dos colegas cubanos".

Onde está a ética desse médico????

Não vou defender aqui o Programa Mais Médicos porque não tenho todas as informações para chegar a uma opinião justa, mas tenho visto muita falta de perspectiva nas opiniões que andam por aí na mídia e na internet. Opiniões gratuitas sobre um assunto do qual não se conhece todas as variáveis, portanto, convido a refletir mais antes de emitir uma opinião.

Parece que o corporativismo da classe médica está impedindo-os de serem conscientes, não permita que suas crenças e ideologias façam o mesmo com você.

Imagem: https://plus.google.com/+JornalOGlobo/posts/8HVFCRFnmZX

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terça-feira, 3 de setembro de 2013

Relacionamento tipo tênis ou tipo frescobol?

Idosos

Hoje, para refletir, um primor de texto de Rubem Alves sobre os relacionamentos. Leia, deguste e pense de qual tipo é o seu relacionamento ...

“Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que, os casamentos (relacionamentos) são de dois tipos: Há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol.

Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.

Explico-me.

Para começar, uma afirmação de Nietzsche com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: “Ao pensar sobre a possibilidade do casamento, cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: Você crê que seria, capaz de conversar com prazer com esta pessoa até sua velhice”?

Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.

Sheerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme “O Império dos Sentidos”.

Por isso, quando o sexo já estava morto na cama e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites.

O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fosse música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer.

Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: ”Eu te amo...”

Barthes advertia: “Passada a primeira confissão, “eu te amo” não quer dizer mais nada. É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética”.

Recordo a sabedoria de Adélia Prado: “Erótica é a alma”.

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir sua “cortada”, palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar.

O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro.

O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la.

Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui, ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra, pois o que se deseja é que ninguém erre. E o que errou pede desculpas, e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos...

A bola: são nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho prá lá, sonho prá cá...

Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão ... O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.

Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração.

O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem - cresce o amor ... Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim...”

Rubem Alves

Imagem: www.reporternews.com.br/

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